Olá leitor! Bom escrever pra você novamente!
O tema que escolhi abordar hoje é
fruto de uma sequência de sessões de psicoterapia com mais de um paciente. O ponto comum dessas pessoas é a dificuldade
em estabelecer e manter relacionamentos afetivos genuínos. Também, de diferentes situações, inclusive
minhas, onde o vínculo, independente do tipo, fica comprometido por conta da
inabilidade que, em muitos momentos, todos manifestamos.
Como muitos sabem, de alguns anos
para cá tenho me ocupado de estudar o amor, tarefa que, a cada dia, me revela
algo novo, notável, surpreendente. Óbvio que num pequeno post do blog será
impossível abordar tantas questões que constituem o amplo e infindável universo
dessa força poderosa que é o amor, porém, leitor, neste vou falar de assuntos
como investimento, perdas e lucros, entrega, transformações...
Vou iniciar com um breve resumo de
uma tragédia grega: Medeia, de Eurípedes.
Conta a história que Jasão, o
“herói”, e uma seleta tripulação embarcaram no “Argo”, uma nau construída
especificamente para essa grande viagem e missão e deixaram a Tessália,
para “resgatar” o velo dourado que se
encontrava escondido numa gruta na Cólquida, às margens do Mar Negro, onde
permanecia protegido por um dragão
insone.
Depois de muitas aventuras durante
a jornada, que não nos interessam neste momento, os Argonautas chegaram por fim
à Cólquida, reino de Etes, pai de Medeia, a princesa feiticeira.
Etes não se recusou entregar o
velo para Jasão, mas impõs-lhe algumas tarefas para que conquistasse o direito de levá-lo embora. Medeia, no entanto, sabia que as tarefas
propostas resultavam na morte de Jasão, por quem se apaixonara e decidiu
ajudá-lo. Jasão percebeu isso e como também
tinha se apaixonado, prometeu casamento à princesa, recebendo em troca os
segredos para que superasse as provas impostas e vencesse o dragão insone.
Medeia, seduzida por Jasão e sua
promessa, traiu ao pai e a seu povo e fugiu da Cólquida com os Argonautas,
levando o velo dourado e o seu irmão, o príncipe Absirto, a quem mandou
matar, esquartejar e lançar os pedaços
ao mar para escapar da perseguição de seu pai, o rei Etes.
Já na Tessália, Medeia e Jasão
passaram a viver num castelo onde, durante um tempo, experimentaram uma vida
amorosa da qual nasceram três filhos, ainda que ele não tivesse cumprido a
promessa de casar-se com ela.
Passado mais um tempo, Jasão anunciou
seu casamento com Creusa, a jovem e bela princesa de Corinto.
Medeia, com o coração devastado,
envenenou os filhos de Jasão, matou Creusa e seu pai, Sísifo, encenando, nesta
tragédia, a maior vingança que se poderia realizar para com um homem.
Esse mito, certamente já foi muito
explorado, inclusive e especialmente ao olhar da Psicanálise, abrindo
compreensões diversas acerca de cada personagem envolvido.
Pois bem, leitor, embora não
pareça, é uma história de relacionamento amoroso, de vínculos afetivos. Sim, há o amor permeando o entrelaçamento
dessas pessoas, acrescido, logicamente, de outros interesses. O mito revela o quanto pessoas sucumbem a
interesses diversos que corrompem o amor.
Nessa história existem muitos
interesses: a conquista de um prêmio e, por consequência, de um status (Herói);
a fuga do controle paterno, a possibilidade de experimentar novas aventuras,
conhecer lugares novos; a oportunidade de uma nova vida e, todos se sobrepõem
ao amor.
Esses interesses ligados à
história contada são representantes simbólicos de inúmeros outros que
poderíamos elencar. O importante é entendermos que, todos os tipos de
interesses que usam a máscara do amor para atingir seus objetivos, são na
verdade manifestações do ego, onde residem, muitas vezes, a insatisfação, a
inveja, a crueldade, o orgulho, a cupidez, o egoísmo, a ganância. Também no ego
residem bons propósitos, porém, a escolha do que motiva cada uma das ações é
exclusivamente nossa.
Estará pensando o leitor: como
pode o amor conter esses motivadores tão ruins?
O amor não é um sentimento sublime? Superior?
Você está certo, leitor! Porém, o ser humano usa a máscara do amor
(pensando que é amor) como a forma mais rápida e fácil de conquistar seus
objetivos. Essa máscara não é o amor,
mas uma imitação dele.
Algumas falas e atitudes das
pessoas eventualmente demonstram quando há máscara em cena. Falas como
“investir no relacionamento”, “perder ou ganhar tempo na relação”, “acertar ou
errar nesta ou naquela fórmula para manter a relação”, enfim, atitudes que
revelam um plano onde efetivamente se espera um retorno ou lucro, não tem o
amor como premissa para a relação. E não
falo aqui somente do amor parceria afetivo sexual. Estou falando de todos os níveis de vínculos
amorosos, que vão da parentalidade e da amizade até a parceria afetivo sexual.
O amor, amigo leitor, é uma
entrega, uma construção feita em conjunto. As pessoas envolvidas nessa
construção oferecem o material e a mão de obra para construir a relação. O
alicerce dessa construção tem que ser autêntico, real, para sustentar tudo o
que virá sobre ele, já que existirão coisas boas e ruins, alegrias e tristezas,
felicidades e percalços variados.
Um dos ensinamentos que temos no
Cristianismo é que “o amor cobre a multidão dos pecados”, ou seja, supera
nossas mazelas. Eu entendo que ele
sustenta nosso desejo sincero de sermos melhores, protege contra as intempéries
dos maus sentimentos vindos de dentro e de fora e por fim, recobre, sim, a tudo
que foi colocado de coração nessa construção, como se fora uma brilhante coroa,
uma conclusão da obra. O amor é a casa
toda, desde o alicerce até o telhado.
Essa obra, que temos como um ideal internalizado em nós, já que nascemos
todos para amar, permanece em construção continua até que determinemos seu fim,
o fim de uma relação amorosa. Acredito, leitor, que você tenha percebido que
quando essa construção é genuína, é difícil terminar, pois permanece em estado
de acabamento, manutenção,
aperfeiçoamento. Há sempre algo novo para colocar nessa construção e, penso
que o ideal esperado de nós é que um dia ela seja uma grande, uma imensa mansão
onde caiba toda a humanidade.
Mas vamos parar de “viajar” e
voltar à máscara do amor. Essa não se
sustenta. Cai em algum momento e acaba por revelar o sentimento e desejo
original oculto pelo ego. Quando isso
acontece, a construção desaba e o que resta é a devastação.
Medeia não é uma vilã. Nem
Jasão. São corações devastados que se
deixaram levar pelas máscaras. São
corações que sofreram com uma construção que começou errada e não se
concluiu. Também não são vítimas, mas
são corresponsáveis por aquilo que deixaram de entregar, de oferecer. Fizeram investimentos e esperavam colher
juros e dividendos vindos do outro. As
ações de Medeia na forma de traições e assassinatos nada mais foram do que as
quedas das máscaras usadas em cada vínculo, em cada relação.
Logo, relações onde o ego espera
lucro com o investimento, tende a haver perdas incontáveis. A seguir, movido pelas perdas, o ego busca
reparação usando como recursos, infelizmente, a vingança e depois a culpa. Pois é, leitor, devastação gerando
devastação.
Em tempos atuais as pessoas visam
primeiro o que se pode ganhar e se o investimento ou tempo “gasto” num
relacionamento valerá a pena. Ficar tornou-se a opção indicada, já que
não pede nada (nem sequer uma identidade!) e também não se dá nada. Não há
troca, não há entrega. Só um aparente
ganho pelo prazer. Não há
comprometimento de se construir efetivamente uma relação com tudo o que está
implicado nisso, ou seja, os bons e maus momentos que farão parte dessa
construção. A simples hipótese de que
pode haver dissabores no meio do caminho já marca a decisão pelo não
compromisso. Aí se instala a máscara.
Quero lembrar que amizade é uma forma de relação. Nem isso as pessoas estão
sabendo construir. Preferem apenas ficar.
Note, leitor amigo, que não estou
criticando a modalidade ficar e nem
bancando o puritano careta. Estou
pontuando o quanto nos deixamos conduzir por egos que se permitem distorcer
valores importantes. No nosso caso (Brasil) a cultura primitiva do “sempre levar
vantagem” acabou mais do que cristalizada em nós. E, se alguém vai levar vantagem, por
consequência, outro alguém sairá perdendo. Sim, perdem as relações, perdemos todos,
perde o amor. Corações e corações
devastados pululam por aí, deixando a dor e a frustração como marca registrada
dos muitos vínculos que não “renderam” tudo o que deles se esperava.
E então, uma vez devastado, esse
coração pede reparação, pede justiça! Precisa acontecer alguma coisa para que
continue a existir vida ali. Brota o desejo de vingança, um espinheiro que
machuca mais a quem lhe oferece o campo do que aquele a quem ele é dirigido.
Mas, aos olhos do ego, um espinheiro é melhor do que um deserto. O que não se percebe é que o espinheiro não
protege, provoca isolamento; o
espinheiro não embeleza, torna a alma sombria; o espinheiro não frutifica,
conserva árido o solo devastado do coração.
Assim, leitor, mais uma vez a
máscara cai. Aquilo que o ego mantinha como justo e adequado é enfim percebido
como uma solidão sombria e árida. Novamente o desejo de reparação vem e faz
nascer a culpa. Esse tipo de vegetação é pequeno, feio e sem graça, um quase
nada sobre o solo do coração devastado. Porém, leitor, suas raízes profundas
atacam o ser e minam suas forças, provocando doenças e desequilíbrios orgânicos
e psíquicos de ordem variada. Eu diria que é o pior dos males que pode brotar
em nós, pois se enraíza de tal forma que se torna difícil de arrancar. O ego,
cumprindo seu importante trabalho de tentar nos manter minimamente funcionais,
pega outra máscara e assume novo personagem com aparência amorosa, às vezes
suave, entretanto carregada com as marcas da dor. Entra em cena uma vítima que
busca incessantemente a compaixão daqueles que estão à sua volta. Às vezes,
essa plantinha permanece ligada à pessoa pelo resto da vida onde o coração
sofreu a devastação e, lamentavelmente pode ainda marcar sua presença em outras
vidas que virão.
A culpa é uma terrível erva
daninha que impede o nascimento de outros sentimentos que sejam mais plenos e
espontâneos. Se por um lado ela se alimenta das forças de seu hospedeiro, por
outro depende da atenção que conquista dos outros. Para chamar a atenção, lança
mão de artifícios que prejudicam ainda mais aquele que a carrega: baixa auto
estima, menos valia, melancolia, entre outros, são os elementos que darão o
tom, a cor sem graça, lamentosa dessa vítima.
Existem também aqueles que tentam
compensar a tudo e a todos pela sua imensa culpa. Colocam a máscara da benemerência, da
simpatia extremada e fazem um esforço hercúleo para conquistar o bem querer de
todos ao redor. Usam uma máscara colorida e atraente, mas que não deixa de ser
o que é: uma aparência e, como toda máscara, pode cair a qualquer momento e
mostrar o terreno devastado daquele coração.
Portanto, leitor, vingança e culpa
são as partes que compõem o cenário de um coração devastado.
E o que aconteceu com Medeia
depois de sua vingança, leitor?
Ela fugiu para Atenas, onde se
casou com o rei Egeu e teve um filho, Medo.
Passados alguns anos, Medeia volta para a Cólquida em busca do perdão
de seu pai Etes, levando seu filho consigo. Etes, no entanto, fora
deposto pelo seu irmão Perses. Medeia e
Medo, então, matam Perses e Medo se torna rei da Cólquida.
Observe, Leitor, que apesar do
caminho de Medeia ainda ficar carregado com mais um assassinato com o objetivo
de reparação, há um detalhe importante que mostra a direção que devemos tomar
para recuperar um coração devastado e torná-lo solo fértil e pleno de vida
novamente.
A poesia da música Insensatez, de
Tom Jobim e Vinícius de Moraes, conta exatamente essa história, de um coração
devastado, trazendo a resposta:
Ah, insensatez, que você fez,
Coração mais sem cuidado...
Fez chorar de dor o seu amor,
Um amor tão delicado...
Ah! Porque você foi fraco assim?
Assim, tão desalmado?
Não merece ser amado.
Vai meu coração, ouve a razão,
Usa só sinceridade.
Quem semeia vento, diz a razão,
Colhe sempre tempestade.
Vai, meu coração, pede
perdão!
Perdão apaixonado!
Vai, porque quem não pede
perdão...
Não é nunca perdoado.
Esse é o pesticida que elimina o espinheiro da vingança e seca as raízes
da culpa. É o remédio para as moléstias do corpo e da mente, fundamentadas na
culpa. É o fertilizante que transformará o solo árido do coração devastado em
imenso campo florido onde se poderá, enfim, construir e construir e construir inúmeras
moradas de amor genuíno.
Ralmer.